
O que há por
trás dos dois assassinatos de líderes do MST na Paraíba?
Polícia não
descarta nenhuma hipótese, mas parentes dos executados apontam crime político.
Cada pé de
feijão, banana e maracujá na plantação da família Bernardo da Silva guarda um
gesto de Orlando. A dedicação e as ideias do trabalhador rural se traduzem na
fartura da plantação que cuidava. Ali, o vento sopra com a intensidade do
litoral nordestino e faz as bananeiras sussurrarem. Falam por Orlando. “Parece
que ele ainda vai chegar”, diz a sua mulher, Nilda. Em oito de dezembro, José
Bernardo da Silva, conhecido como Orlando, 46 anos, foi executado à queima
roupa. Seis tiros. Ele era um dos dirigentes do Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) na Paraíba e vivia no assentamento Zumbi dos Palmares,
distante 1h30 da capital.
Outras três
balas também foram disparadas contra Rodrigo Celestino, 38 anos, que fazia
parte da coordenação do acampamento Dom José Maria Pires, localizado na zona
rural de Alhandra, no litoral sul da Paraíba, onde o crime ocorreu. Os
assassinatos foram como um relâmpago. Tudo durou três minutos. As execuções
chegaram sem aviso ou ameaça. Pegaram todos de surpresa.
O porquê
ninguém sabe ao certo. “Nessa altura não se pode ainda descartar nenhuma
hipótese, tampouco afirmar que aconteceu um crime com motivação específica”,
comenta a delegada Roberta Neiva, responsável pelas investigações na Polícia
Civil da Paraíba.
Mas o irmão
mais velho de Orlando, Osvaldo Bernardo da Silva, 47 anos, não hesita em
apresentar sua tese. Para ele, trata-se de uma morte política “pela forma que
ele foi executado. Ele estava tirando o privilégio de alguém e alguém estava
incomodado com isso.”.
Na tese de
assassinato político, as suspeitas são muitas, por conta da ampla atuação de
Orlando e Rodrigo. Rodrigo era técnico agrícola e trabalhava para ajudar a
desenvolver projetos de agroecologia e proteção do meio ambiente no
acampamento. Já Orlando, além da
dedicação ao MST, também atuava em parceria com os irmãos que faziam parte do
Movimento dos Atingidos por Barragens, o MAB, pois sua família perdeu tudo em
2002 por conta da construção da barragem de Acauã, no rio Paraíba, região
agreste do Estado. Até hoje ninguém foi indenizado. “Parece que ele ainda vai
chegar”, diz Nilda poucos dias após o assassinato do marido, Orlando; eles têm
cinco filhos (Fotos: Joana Moncau).
São várias as
suspeitas apuradas pela Repórter Brasil em conversas com trabalhadores rurais e
moradores da região. Uma delas é que os mandantes poderiam ser empresários do
ramo da construção civil local, incomodados com a tentativa de preservação dos
barrancos de areia nas margens do rio que fica próximo ao acampamento. Alguns
também comentam da possibilidade de ser retaliação dos donos da fazenda onde
foi fundado o acampamento, na tentativa de expulsar os acampados dali. Outros
desconfiam de que alguém dentro do próprio acampamento esteja envolvido. Não se
descarta também a motivação de um recado político, para intimidar o MST diante
do crescente discurso de criminalização do movimento.
Osvaldo
também não exclui a hipótese de o crime contra seu irmão ter sido motivado por
outra ocupação que eles lideraram na Paraíba, na fazenda Mascate, no município
de Itatuba, em 2009. Em julho daquele ano, seu outro irmão, Odilon Bernardo da
Silva, militante do MAB com então 33 anos, foi executado em uma emboscada em Aroeiras,
cidade vizinha à fazenda improdutiva ocupada e região de origem da família
Bernardo.
A fazenda
Garapu
O acampamento
Dom José Maria Pires, onde atuavam Rodrigo e Orlando, ocupa parte do terreno da
Fazenda Garapau, da empresa Agrime – uma das 47 empresas do grupo pernambucano
João Santos, dos Cimentos Nassau – onde a produção está parada, mas o bambuzal
ainda domina a paisagem. Lá, os acampados tentam transformar a monocultura do
bambu, utilizada principalmente na indústria da celulose, em culturas para
alimentação e produção de cosméticos naturais, inclusive utilizando o óleo da
essência do próprio bambu.
O acampamento
do MST ali existe há 1 ano e cinco meses e tem hoje 354 famílias. De acordo com
o INCRA, o processo para regularização do assentamento e desapropriação dos
cerca de 5.250 hectares foi iniciado em março de 2018. Está na fase de
notificação dos proprietários para que em seguida ocorra a avaliação técnica do
órgão. A Agrimex com sede na Fazenda Garapu foi investigada pelo Ministério
Público do Trabalho na Paraíba e notificada 97 vezes por auditores-fiscais do
Ministério do Trabalho por infrações trabalhistas. Segundo João Lau, secretário
de assalariados da Federação dos Trabalhadores na Agricultura da Paraíba,
existia 460 trabalhadores vinculados à fazenda – 382 foram demitidos nos
últimos meses sem pagamento e sem ter recebido qualquer direito. Há ainda
aqueles que trabalharam a vida toda na plantação e hoje não conseguem se
aposentar.
O grupo João
Santos foi condenado pela Justiça pernambucana e deve R$ 60,5 milhões em
dívidas trabalhistas naquele estado. Segundo reportagem do Valor Econômico, o
grupo está em crise e tem dívidas fiscais que superariam R$ 8 bilhões.
Criminalização
inflamada
A Repórter
Brasil tentou contatar um representante do Grupo João Santos através de seu
escritório no Recife e a empresa Agrimex, no Maranhão, mas nenhum representante
foi apontado para comentar o caso. O advogado da empresa informou que não
poderia falar em nome da Fazenda Garapau. No telefone indicado da Agrimex,
ninguém atende.
Não se
descarta ainda que o mandante do crime seja um desconhecido inflamado pelo
discurso do presidente eleito, Jair Bolsonaro, de criminalização do MST.
O contexto
político nacional, após as eleições e a vitória do presidente Jair Bolsonaro
(PSL), reverbera dentro e fora do acampamento. O discurso que classifica
membros do MST como terroristas encontra eco no medo dos moradores do
acampamento, que andam olhando por cima dos ombros. Entre eles há também
eleitores de Bolsonaro em busca do direito a terra.
“Dentro desse
contexto político de ascensão do autoritarismo, nos parece que esse tipo de
ação [de criminalização de militantes] tem sido mais bem orquestrada”, explica
Olímpio Rocha, advogado popular que integra o MST na Paraíba há dez anos. Ele
se refere ao fato de que, além das mortes e ameaças, os trabalhadores rurais
são cada vez mais alvos de processos judiciais que buscam criminalizá-los.
Olímpio vê isso quase que diariamente: durante as reintegrações de posse, após
a ocupação de terras improdutivas, algumas pessoas são identificadas e acusadas
de furto, dano patrimonial ou incêndio e processadas sem provas.
“Tem um caso
emblemático de um cidadão que foi acusado de porte ilegal de arma de fogo e
testemunhas dizem que ele estava soltando fogos no dia de São José”.
A Paraíba e a
política da bala
Independentemente
da causa e dos possíveis responsáveis pelos assassinatos, às execuções trazem à
tona a tradição de violência no campo da Paraíba. De 2009 a 2017, houve sete
assassinatos de pessoas envolvidas na luta pela terra na Paraíba, segundo a
Comissão Pastoral da Terra (CPT). A elas se somam as mortes de Orlando e
Rodrigo, ocorridas em 2018. No Brasil todo, foram 71 assassinatos em 2017– um
número que não havia sido tão alto desde 2003. A escalada da violência começou
em 2014 de acordo com as estatísticas da CPT.
Porém, na
Paraíba, a violência no campo parece ser um padrão de décadas. Os assassinatos
remontam às origens das Ligas Camponesas – movimento de luta pela reforma
agrária nos anos 1960. João Pedro Teixeira, fundador da primeira Liga Camponesa
da Paraíba, e Margarida Alves, sindicalista que lutava pelos direitos trabalhistas
em sua terra, são nomes sempre lembrados no Estado. Como Rodrigo e Orlando, os
dois também foram brutalmente executados. O documentário “Cabra Marcado pra
Morrer”, de Eduardo Coutinho, conta a história de Teixeira.
Também em
2009, mesmo ano do assassinato de Odilon, outro caso de repercussão foi o
assassinato do ex-vereador do Partido dos Trabalhadores em Pernambuco e
advogado, Manoel Mattos. Ele denunciava a ação de grupos de extermínio que
atuavam na divisa do sul da Paraíba com o norte de Pernambuco assassinando
jovens, homossexuais, suspeitos de roubos e trabalhadores rurais. Foi morto em
Pitimbú, no litoral sul da Paraíba – mesma região onde Orlando e Rodrigo foram
executados.
As denúncias
de Manoel Mattos levaram à instalação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito
na Câmara dos Deputados em Brasília (leia aqui o relatório final da CPI,
apresentado em 2005), que apurou envolvimento de proprietários de terra,
comerciantes, policiais, delegados, promotores, juízes e políticos eleitos.
Um dos nomes
citados na CPI é o do atual vice-prefeito de João Pessoa, Manoel Júnior (MDB) –
que mais recentemente ganhou os noticiários ela suspeita da Polícia Federal de
envolvimento no esquema de favorecimento à JBS durante o governo de Dilma
Rousseff. Júnior era deputado estadual à época da CPI, natural de Pedras de
Fogo, onde possui terras e iniciou a carreira política como prefeito. Teve três
mandatos consecutivos como deputado federal e foi um dos aliados do ex-deputado
Eduardo Cunha.
A repercussão
do ódio
No programa
policial Cidade em Ação na TV Arapuã, o apresentador Sikêra Júnior ironiza a
atenção dada aos assassinatos das lideranças. Ricardo Coutinho (PSB),
governador da Paraíba, esteve presente no enterro de Orlando, assim como a
senadora e presidente do PT, Geleis Hoffman. Ao noticiar a morte de um policial
dentro de um restaurante em João Pessoa na mesma tarde em que se celebrou a
missa de sétimo dia de Orlando da Silva e Rodrigo Celestino, o apresentador
para em frente à imagem congelada do enterro do policial e questiona: “Você
está vendo alguma vereadora?”. Na página do MST no Instaram, no post que
apresenta uma sequência de fotos do velório de Orlando, é possível ler
comentários que celebram seu assassinato. “É pra matar mesmo”, diz um. “Morte ao
MST seus putos”, diz outro.
O procurador
José Godoy, do que atua desde 2015 no Ministério Público Federal na Paraíba,
diz que a instituição está preocupada com esse discurso de ódio. “Esse é um
discurso que já vinha rondando há muito tempo, foi um discurso muito utilizado
no processo eleitoral e sempre nos deixa muito atentos”, pondera Godoy. “Temos
um receio forte que agora exista um sentimento de que agora se pode.” Foi Godoy
quem comunicou o crime às autoridades, como a procuradora-geral da República,
Raquel Dodge. Foi ele também quem acionou o governador.
Em meio à
dor, os moradores e moradoras do acampamento Dom José Maria Pires, onde
ocorreram os assassinatos, continuam sobtensão. O MST organizou um ato uma
semana após as mortes de Rodrigo Celestino e Orlando Bernardo. Uma hora depois
do ato encerrado, quando todos os visitantes já haviam ido, a reportagem
almoçava e conversava com os moradores sobre os peixes da região, quando a
notícia chega: um carro com quatro homens armados que se identificaram como
policiais (um deles utilizava uma tornozeleira eletrônica) entraram no
acampamento. Perguntaram pela “cabeça” e saíram em seguida.
Diante dessa
tensão latente, algumas pessoas já desistiram de continuar ali. Outras seguem.
“Qualquer militante que tem compreensão política está correndo um risco.
Enfrentamos grandes interesses”, sentencia Osvaldo Bernardo da Silva. “Ninguém
vai se acovardar e morrer debaixo da cama. Vai ter mais cuidado daqui para
frente”.
Suas palavras
vão de encontro à frase dita por Margarida Maria Alves, que se lê pintada na
parede do refeitório do acampamento Dom José Maria Pires, onde ocorreram os
assassinatos: “Melhor morrer na luta que morrer de fome”.
Esta
reportagem foi realizada com o apoio da DGB Bildungswerk
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