Pantanal sofre a maior devastação de sua história enquanto
voluntários lutam para salvar os animais Área queimada é equivalente a Israel.
Maior risco para a fauna é cair em áreas de fogo de turfas, a combustão de uma
camada do subsolo, que queima e amputa as patas de veados, onças e antas JULIANA
ARINI
Mato Grosso - 12 SEP 2020 - 16:25 BRT
Os incêndios que assolam o Pantanal há dois meses são os
maiores da história. Dados do Centro Nacional de Prevenção e Combate aos
Incêndios Florestais (Prevfogo) apontam que 15% do Pantanal foi consumido, uma
área equivalente a 2,2 milhões de hectares, ou o território de Israel. Até
meados de setembro, os satélites que que vigiam a região para o Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, já detectaram 12.703 focos ativos de
incêndio, que representam dezenas de frentes descontroladas de queimadas. São os
maiores números da série histórica da instituição, iniciada em 1998.
Mais do que números, no entanto, os incêndios na maior
planície alagada do mundo são uma tragédia devastadora para um dos biomas até
então mais preservados do país, abrigo de animais extintos em outras regiões,
como a onça-pintada. Importantes refúgios de fauna foram dizimados na ampla
zona que fica no extremo oeste do Brasil, entre Mato Grosso e Mato Grosso do
Sul e as fronteiras da Bolívia, Argentina e Paraguai. Estão entre essas áreas o
Parque Estadual Encontro das Águas, conhecido por ser morada da maior
concentração de onças-pintadas do planeta, e a Terra Indígena Perigara, em Mato
Grosso, e parte da Serra do Amolar, em Mato Grosso do Sul. Há cenas nas
queimadas que remetem às descrições do poeta italiano Dante Alighieri
(1265-1321) sobre o inferno. Em uma das mais de 120 pontes da rodovia
Transpantaneira (MT-060), em Porto Jofre, a 160 quilômetros da capital
mato-grossense, as chamas cercam os dois lados da pista de terra. Toda
vegetação ao redor queima e forma um rio de brasa e chamas, que some no
horizonte. O primeiro impulso é parar o carro, mas o calor e a agressividade do
fogo tornam a aventura impossível. Animais domésticos e silvestres correm
atordoados na rodovia entre a fumaça, para buscar locais seguros.
O "Paraíso das Águas", como é conhecido o
Pantanal, arde sob as chamas de um dos maiores incêndios da história provocado
pela seca e por incêndios criminosos. As queimadas na Amazônia também
influenciam o regime hidrológico na região, uma vez que a umidade da maior
floresta tropical do mundo é canalizada para o Pantanal pelos ventos.
O Pantanal queima e aumenta a pressão sobre a gestão
ambiental no Brasil
Fogo contra fogo. Os bombeiros usam na região com sucesso a
tática de provocar um fogo que reduza a capacidade do incêndio de continuar se
propagando
Devastação da Amazônia prejudica chuvas e ajuda Pantanal a
bater recorde de queimadas
Salles anuncia suspensão de operações contra desmatamento
por falta de verba e recua horas depois
“Em situações de incêndio a resposta é de fuga. Os animais
vão para todo o lado. Se os incêndios são focais é menos problemático para a
fauna, mas em áreas multifocais, como o de agora, é mais grave. Quando vemos
animais como onças-pintadas reagindo assim é que houve um dano”, diz a
pesquisadora Dione Vênega da Conceição, professora do curso de Medicina
Veterinária da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). “Caso as áreas
fiquem constantemente degradadas, a tendência é que as onças passem a circular
cada vez mais por áreas urbanas”, diz.
Cercados pelo fogo
O guia de turismo Abelardo Antônio da Silva, conhecido como
Tonny, de 53 anos, conduz a reportagem a uma região de hotéis, na
Transpantaneira. Ele integra uma brigada privada dos donos de pousada e agentes
de turismo, que se uniram para salvar pontes e garantir que as chamas não
cheguem às áreas de construções turísticas e moradias.
O esforço das equipes é sobre-humano. Alguns trabalham por
três dias seguidos sem parar, mas é uma luta inglória. São apenas 33 pessoas se
revezando nessa brigada. Somado aos esforços nacionais de 122 homens, chega-se
a pouco mais de 150 pessoas lutando contra o fogo em Mato Grosso. Um homem para
cada área de 350 quilômetros. A logística local dificulta ainda mais o cenário.
Para se percorrer os 160 quilômetros da Transpantaneira leva-se até cinco
horas. Algumas das regiões têm acesso tão difícil que requerem um dia inteiro
de viagem. Entre vinte a dez aeronaves ajudam no combate, mas a grande maioria
passa o dia em terra ―a fumaça não permite que haja teto para sobrevoo. Quando
conseguem decolar, a imagem dos pequenos aviões despejando água sobre
quilômetro de chamas lembra a de um beija-flor que tenta apagar um incêndio na
floresta. Poética, mas quase inútil.
O Ministério da Defesa nega que o número de homens seja
insuficiente. A assessoria do órgão afirma que existem 400 homens das Forças
Armadas atuando no combate a incêndios na região de todo Pantanal. Já no Mato
Grosso, um Centro de Coordenação da Operação foi instalado no aeródromo do Sesc
Pantanal, em Poconé. Em média, nessa região, estão engajados nas atividades, no
ápice da ação, 300 homens, entre militares e agentes de órgãos como o Corpo de
Bombeiros e dos órgãos oficiais de preservação e fiscalização, ICMBio e Ibama.
A reportagem não cruzou com nenhum desses soldados, apenas agentes do ICMbio e
Prevfogo (Ibama) em sua visita ao Pantanal, além da brigada privada. No acesso
à pousada Rio Claro, o fogo cerca novamente o carro da reportagem. Tonny pula
do veículo e tenta combater as chamas com uma folha de palmeira.
Seguimos até a sede do hotel e avisamos à recepcionista: “O
fogo está cercando vocês”. Ela toma um susto e sai correndo. “Por favor, avisem
meu marido”, diz, em desespero. Em menos de dez minutos, o fogo cerca o local e
começa a queimar tudo no horizonte, levantando uma cortina de fumaça negra no
céu, antes azul. O gado se abriga em um ipê-rosa carregado de flores. Werner
Luiz de Souza, o gerente da pousada, tenta contatar o proprietário pelo rádio e
chamar os vizinhos para ajudar. Um peão, destemido, enfrenta as chamas e
arrebenta uma cerca de arame para salvar um grupo de cavalos. Ninguém chega
para ajudar. O fogo consome tudo, mas por sorte (dos humanos), o vento leva as
chamas para outra direção.
Nem todos têm a mesma sorte. Na semana que passou foi
registrada a morte de um homem com 100% do corpo queimado na área da Serra do
Facão. Ele era funcionário de uma fazenda, zootecnista e tinha 36 anos. Com
outros três funcionários da fazenda, tentava apagar o fogo quando uma rajada de
vento mudou a direção das chamas. Ficou preso no meio do incêndio. O jovem foi
levado ao hospital de Cáceres, a 220 km da capital, passou por uma hemodiálise,
mas não resistiu e faleceu na quarta-feira (9).
Fornos fumegantes
O pesquisador Walfrido Moraes Tomas, da Embrapa Pantanal,
não sabe indicar na literatura científica registros de algo semelhante ao que
tem acontecido. “É inédito, estamos partido do zero”, diz. Ele coordena um
projeto de pesquisa que tenta contabilizar quantos animais foram atingidos. O
método para estimar a quantidade de animais mortos é basicamente caminhar por
áreas recém queimadas e contar as carcaças. Para os animais, o maior risco é
cair em áreas de fogo de turfas ―a combustão de uma camada do subsolo―, uma
verdadeira armadilha natural.
“Na última incursão ficamos muito assustados com o barulho
do fogo que vinha do solo e recuamos”, lembra a pesquisadora Christine
Strusman, da UFMT. Esse tipo de fogo explica o fato de a maioria dos animais
resgatados estarem com as patas queimadas ou amputadas. Dois veados, uma onça,
uma anta e uma jaguatirica foram encontrados nessa situação e sacrificados
devido à gravidade dos ferimentos. É uma realidade bem diferente do Pantanal
que está na memória de Cátia Nunes da Cunha, pesquisadora do Centro Nacional de
Pesquisas do Pantanal (CPP) e do Instituto Nacional de Áreas Úmidas (Inau).
Natural de Poconé, a 100 quilômetros de Cuiabá, ela cresceu na região a qual
dedicou quarenta anos de estudo. “Lembro da minha infância, entre as décadas de
1960 e 1970, quando houve uma longa seca. Tudo era cinza e a terra ficava
sempre exposta. A poeira era constante, mas não me recordo de fogo como o que
vejo hoje”, diz. “Neste ano vi cenas de horror em minhas visitas à região.”
Devastação
Mesmo notícias aparentemente positivas escondem armadilhas.
Estima-se que os focos de incêndio concentrados nas regiões de Poconé, Barão de
Melgaço e Porto Jofre, em Mato Grosso, já tenham passado por redução superior a
72%, conforme relatório do Corpo de Bombeiros de Mato Grosso. Os focos na
Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) Sesc Pantanal, uma das áreas
mais afetadas, também diminuíram em 97%. No entanto, há uma realidade triste
por trás dessa queda.
“O incêndio reduziu mesmo, mas porque tudo foi destruído”,
resume Eduardo Falcão, tenso, ao telefone. Ao mesmo tempo em que fala, o
pantaneiro e dono da pousada Reserva Ecológica do Jaguar, na rodovia
Transpantaneira, dirige mais uma de suas operações de resgate de fauna. Duas
onças que antes acasalavam no Parque Estadual Encontro das Águas estão com as
patas totalmente queimadas e agonizam. Seu filho João Falcão e dois
veterinários voluntários seguem de barco até o córrego Três Rios para salvar
esses animais. Eduardo construiu um recinto para abrigar os bichos salvos das
chamas. Alguns deles foram enviados para o hospital veterinário da Universidade
Federal de Mato Grosso (UFMT), outros foram levados para áreas seguras.
Os Falcão são descendentes de um grande caçador de onças,
que acabou se convertendo em protetor devido ao turismo. Eduardo já resgatou
diversos animais, de onças a antas, veados e quatis. Nem todos os resgates são
bem-sucedidos. Um exemplo é a onça que o grupo tentou resgatar na região do
Corixo Negro: “Ela está muito brava. Ontem tentamos anestesiar para capturar, e
ela tirou o dardo e fugiu para o mato. Bicho ferido, muito perigoso”, diz,
preocupado com o filho e com os veterinários que estão há mais de vinte dias no
local.
A curto prazo, a situação não deverá ter receber nenhum
alívio: as previsões dos institutos científicos são de que as chuvas só chegarão
ao Pantanal em outubro.
Futuro incerto
O impacto da destruição de refúgios naturais do Pantanal
também é uma incógnita para os pesquisadores. “Sabemos que muitos animais fogem
e se refugiam. Mas estamos lidando com uma cadeia. As serpentes de água
certamente estão entre o grupo mais atingido. E elas servem como controle
populacional e alimento de outros animais”, explica pesquisadora Christine
Strusman. “Os capões (terras altas) que visitei foram intensamente destruídos.
Como as araras-azuis farão ninhos naturais sem as árvores que queimaram e como
vão se alimentar sem os frutos de bocaiuva e bacuri ainda não sabemos”, completa
a pesquisadora Cátia Nunes.
Mesmo animais aquáticos serão afetados. Os peixes, por
exemplo, dependem da relação com a flora. “Pacus estão ligados aos frutos, como
o conhecido tradicionalmente por laranjinha e o tucum. Como esses peixes vão
lidar com a escassez desses alimentos é algo que pode repercutir em toda bacia
do rio Paraguai, indo além das fronteiras do Brasil”, segue Nunes.
Os cientistas tampouco conseguem dizer como ou quando o
bioma da região poderá se regenerar um dia. “O Pantanal é, em parte, resiliente
ao fogo, pois guarda em sua estrutura algumas manifestações do Cerrado, uma
paisagem vegetal adaptada às queimadas. Mas também existem muitas florestas
secas e matas alagadas que não têm condição de responder da mesma forma. As
áreas com árvores de ipê-rosa, as famosas piúvas pantaneiras, podem se perder
por completo.”, explica Nunes.
A pesquisadora do Inau alerta para os sinais falsos de que
tudo ficará bem depois do fogo. “Geralmente depois de grandes incêndios a
paisagem respondem com uma rápida camada de capim muito verde. Parece que está
tudo bem. Mas, se olharmos de perto, vamos ver que não é um capim como mimoso,
natural do bioma e muito rico, mas algo mais pobre e com muita menos
biodiversidade”, diz Nunes.
Mato Grosso abriga 35% do bioma Pantanal, com 52 milhões de
hectares, e o fogo já destruiu quase um quarto disso. É no Estado, em
Diamantino, que estão as nascentes do rio Paraguai, o principal formador do
bioma, resultado de uma dinâmica de águas dependente dessas terras altas
mato-grossenses. “Na porção continental do Pantanal, tudo é o Chaco. Da Bolívia
até o Paraguai só há uma região semiárida, quase desértica. Sem essas nascentes
(em Mato Grosso) não temos a dimensão de até onde o Chaco poderia se estender.
Foram os rios das terras altas, e seu pulso de inundações, que mudaram a
paisagem local”, explica a pesquisadora.
Fogo frio
Em uma área cercada de piúvas rosadas, conseguimos avistar
um cervo-do-pantanal, macacos-barrigudos, araras-azuis, um grupo de quatis e um
tamanduá. O fogo não chegou à pousada de Luiz Vicente da Silva Campos Filho, de
57 anos. O local é um descanso aos olhos de quem só viu destruição ao longo da
estrada. Vicente conta que usa métodos próprios para evitar as queimadas, mas
se esquiva em revelar suas técnicas. Vicente conta que sua propriedade é mais
úmida que as demais. Só depois de uma longa conversa, ele acaba também
defendendo o uso do chamado fogo frio. A palavra define como os pantaneiros
tradicionais chamam a técnica de se criar pequenas frente de fogo durante as
chuvas para reduzir a biomassa vegetal, a maior responsável pelos grandes incêndios
que hoje assolam o Pantanal.
Paradoxalmente, é esse uso do fogo que pode salvar o
Pantanal do fogo. “Limpeza de campo é a solução”, diz Eduardo Falcão. “Nunca
teve fogo dessa magnitude antes porque, no passado, o pantaneiro usava o fogo
para evitar o fogo. Agora proibiram e veio esse fogo grande. Agora precisam
repensar isso”, diz ele. Pela atual legislação é proibido o uso do fogo em
todos os sentidos. Apenas com um complicado processo na Secretaria de Estado de
Meio Ambiente de Mato Grosso (Sema-MT), mediante acompanhamento técnico e
consultoria, é possível lançar mão das chamas. Algo restrito aos grandes
proprietários rurais e que exclui todos os pequenos e médios fazendeiros do
Pantanal. Os proprietários rurais exigem que as regras de manejo sejam repensadas.
O Estado de Mato Grosso abriu uma frente de debate na Assembleia Legislativa do
Estado para tentar mudar a legislação.
Segundo perícia divulgada pela Sema-MT, os
maiores incêndios do Pantanal de Mato Grosso tiveram como origem a ação humana
e também a explosão de cabos de energia elétrica. No entanto, as porções
pantaneiras de Argentina, Bolívia e Paraguai também sofrem com grandes 
