“Sem discutir gênero, não vamos conseguir prevenir a
violência sexual”, diz pedagoga
Confira a entrevista com Caroline Arcari, autora da obra
“Pipo e Fifi”, que participou do XIII Encontro das Crianças Sem Terrinha do
Paraná
25 de outubro de 2019 16h30 Entre os 66 mil casos de
violência sexual registrados em 2018, 54% das vítimas tinham até 13 anos, de
acordo com o 13º Anuário de Segurança Pública, produzido pelo Fórum Brasileiro
de Segurança Pública. Quase 90% dos casos deste tipo de violência contra
crianças e adolescentes são registrados no ambiente familiar. Como forma de
avançar na prevenção do problema, o tema fez parte da programação do XIII
Encontro Estadual das Crianças Sem Terrinha do Paraná, realizado entre dos dias
16 e 18 de outubro.
“Entendemos que esse debate é fundamental para que nossas
crianças cresçam em um ambiente seguro e saudável, uma educação emancipatória
só é possível se levarmos em conta todas as dimensões do ser humano. Por vez
debates como esse são negados, ou seja, deixamos de ajudar crianças e
adolescentes a tornarem-se adultos saudáveis e construtores de uma nova
sociedade”, explica Jeizi Back, integrante do Setor de Educação do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná.
Ela explica que Setor tem buscado formar um coletivo de
educadores e educadoras para estudar, debater e construir processos formativos
referentes temas sobre corpo, gênero e sexualidade. “Estamos sempre atentos(as)
para combater esse mal, tanto dentro do movimento como na sociedade em geral”.
No Encontro das Crianças Sem Terrinha, o assunto foi
trabalhado pela pedagoga e escritora Caroline Arcari, autora da obra “Pipo e
Fifi”, lançada em 2012 e já traduzida para quatro idiomas. “Os personagens são
dois monstrinhos que falam para as crianças o que são as partes íntimas, qual a
diferença entre um toque saudável, que simboliza afeto, amor, e um toque que
pode ser abusivo”, explica a autora.
Cada uma das 400 crianças participantes do encontro recebeu
um exemplar da obra. A autora também disponibilizou aos educadores e educadoras
das crianças Sem Terrinha um curso online sobre prevenção da violência sexual.
O livro está disponível na íntegra na internet, assim como jogos e um vídeo com
a contação da história especialmente para as crianças.
“É uma grande honra estar aqui no Encontro dos Sem Terrinha,
até porque esse Movimento dá voz às crianças, e isso é algo que como pedagoga
me chamou muito a atenção e que me encanta muito”, disse a autora, durante o
evento.
Confira a entrevista com a autora:
Qual o objetivo e a característica da obra “Pipo e Fifi”?
Caroline Arcari - A obra “Pipo e Fifi” vem atender à
necessidade de orientação, porque viemos de uma geração pautada na ditadura do
silêncio, nós não tivemos educação sexual e a gente não sabe como fazer isso
com as crianças. Os personagens são dois monstrinhos que falam para as crianças
o que são as partes íntimas, qual a diferença entre um toque saudável, que
simboliza afeto, amor, e um toque que pode ser abusivo. Eles [os monstrinhos]
vêm, de forma lúdica, falar de forma descomplicada e honesta o que é violência
sexual e como encontrar caminhos para pedir ajuda. É uma forma de mostrar um
grande respeito pela criança, pela capacidade que elas e eles têm de absorver
este conteúdo, de identificar no seu entorno e na sua vivência se isto está
acontecendo e de buscar ajuda, de buscar uma pessoa de confiança para buscar
ajudar, e também todos os serviços que podem auxiliá-la.
“Pipa e Fifa” já está desde 2012 na estrada, já traduzimos
para outros quatro idiomas, já foi para outros países. É sempre um arquivo
aberto. Apesar de ter o livro para venda, a nossa opção como editora foi deixar
esse conteúdo para qualquer pessoa consumir, para fazer reprodução do livro,
para ver em vídeo. Temos no YouTube e no Instagram. Também proporcionamos aos
municípios a oportunidade de multiplicar esse conhecimento de forma bastante
barata também e democrática para que chegue a todas as crianças. É com grande
alegria que a gente sabe que “Pipo e Fifi” teve grande aceitação até em grupos
conservadores que não sabiam como falar sobre isso e acabaram percebendo que a
informação é que leva à prevenção da violência sexual. Há uma ofensiva por
parte do governo federal e de setores da sociedade que tenta proibir os debates
de sexualidade nas escolas. Como você avalia essa postura?
Caroline Arcari - É um grande retrocesso que coloca nossas
crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. É a informação que
protege, e a discussão de gênero tem tudo a ver com a prevenção da violência
sexual. A maioria dos abusadores são homens heterossexuais, a maioria das
vítimas são meninas. Meninos também são abusados, e pelo mesmo discurso
machista eles têm vergonha de denunciar, e isso é uma questão de gênero.
Meninos não denunciam porque eles têm vergonha quando são abusados por homens.
Nós somos um país homofóbico, um dos países que mais mata população LGBT no
mundo. Quando um menino é abusado, ele entende que foi um contato homossexual,
apesar de os abusadores não serem homens homossexuais, como os mitos acabam
disseminando, porque a maioria são homens heterossexuais. Num país homofóbico,
o menino vai ter vergonha de relatar isso. Num país machista, quando o menino é
abusado por uma mulher mais velha, ele não denuncia, porque isso é visto como
uma forma de ele exercer a masculinidade, não como violência, mas isso traz
muitos problemas no desenvolvimento do menino. Sem discutir gênero, não vamos
conseguir prevenir a violência sexual.
a informação que
protege, e as crianças têm que saber nomear todas as partes do corpo, o que são
partes íntimas, de onde vêm os bebês;
saber o que é contato íntimo de adulto, a forma de fazer bebê, o namoro, a
relação sexual, enfim, é algo específico de uma faixa etária e que adultos não
podem fazer isso com as crianças. Enquanto ficarmos em silêncio, estaremos
colocando as crianças em vulnerabilidade. Não é só papel da família falar sobre
a educação sexual, como o discurso moralista tem apresentado. Até porque a
violência sexual, na maioria das vezes, acontecem abusos no ambiente
intrafamiliar. Se fosse somente tarefa da família dar ou não educação sexual,
como ficariam essas crianças, já que no seio familiar é que acontece a maioria
desse tipo de violência? Sim, as crianças precisam de informação, e a nossa
luta é para que a educação sexual chegue a todo o público, porque é uma das
formas mais eficazes de prevenção.
O que o Estado precisa fazer para avançar na superação desse
problema?
Caroline Arcari - Nós
precisamos educar os adultos, quebrar esse mito de que existe uma ideologia de
gênero, esse mito de que falar sobre sexualidade pode erotizar as crianças.
Pelo contrário. Falar de educação sexual, de sexualidade, de acordo com a faixa
etária, com qualidade de informação, só vai protegê-las. Fortificar as
políticas públicas, sempre relembrar o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA),
e lá podemos encontrar todas as ferramentas que precisamos para reafirmar o
dever de todos os espaços educativos de fazer a educação sexual. Essa luta tem
que chegar nesses espaços educativos, mas principalmente para os adultos que
carregam muitos mitos da sexualidade, que foram educados na ditadura do
silêncio e isso fez com que a comunidade pensasse que a educação sexual é
prejudicial. A educação e a informação precisam chegar para todos esses
públicos para finalmente quebrarmos os mitos e conseguir recomeçar o processo
de educação.
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