Eleição nos EUA: americanos escolhem novo presidente sob
medo de fraude, atraso e violência
Vários edifícios públicos, como o Congresso, foram cercados
como medida de segurança
Os prédios do centro da capital americana amanheceram
cobertos por tapumes de madeira nesta terça-feira, 3 de novembro. Parte das
tábuas já protegiam vidraças na região desde que o movimento Black Lives Matter
ocupou as ruas de mais de cem cidades ao redor do país a partir de junho de
2020. Mas a maioria das barricadas foi recém-instalada e traduz materialmente o
temor de que as eleições presidenciais marcadas para hoje descambem para atos
de violência e saques, especialmente nos arredores da Casa Branca.
De tão cobertos, alguns dos prédios do comércio pareciam
lacrados — plaquinhas de "ainda estamos funcionando" eram a senha
para que os clientes afastassem o madeirame e se esgueirassem porta adentro para
comprar um café ou um donut.
Não é assim que a capital americana tipicamente se prepara
para os pleitos a cada quatro anos. Os tapumes são um símbolo de que os
americanos não se veem diante de uma eleição convencional. De acordo com o
historiador Bruce Schulman, diretor do Instituto de Política Americana, ligado
à Universidade de Boston, essa é possivelmente a disputa presidencial mais
tensa pela qual os americanos passaram desde 1864, quando a reeleição de
Abraham Lincoln foi confirmada em meio à guerra civil americana, que resultou na
morte de 620 mil americanos.
Outra prova disso é o montante de votos dados
antecipadamente em 2020: até a noite de segunda-feira (2/11), quase 100 milhões
de cidadãos já tinham expressado sua escolha entre o candidato democrata Joe
Biden ou o republicano Donald Trump, que concorre à reeleição.
Prédios da capital americana cobriram fachadas com tapumes
com medo de violência na eleição americana
O número é um recorde e equivale a quase 75% do total de
votos contabilizados em 2016. Nos EUA, comparecer às urnas não é obrigatório.
Votos contestados na Justiça
Quase 70% dos votos antecipados foram dados pelo correio. A
pandemia de covid-19 explica porque tantos eleitores optaram por esse meio para
fazer sua escolha. Os EUA vivem sua terceira onda de infecções — com o registro
de cerca de 500 mil novos casos apenas na última semana —, e estão na liderança
dos países com mais mortes em números absolutos, superando a marca das 230 mil vítimas
fatais.
Nos últimos meses, o sistema eleitoral por carta se tornou
alvo de duras críticas do presidente Donald Trump que, em desvantagem de cerca
de nove pontos percentuais nas pesquisas nacionais, tem dito que a votação via
correio abre brechas para fraudes. Em meio aos questionamentos, Trump deu
sinais de que não estaria disposto a aceitar rapidamente uma eventual derrota.
"Queremos ter certeza de que a eleição será limpa, e eu não tenho certeza
de que ela será", afirmou Trump a repórteres no fim de setembro.
Quase 100 milhões de eleitores já votaram antecipadamente no
pleito presidencial de 2020
O presidente também garantiu que recorreria à Suprema Corte
do país para tentar invalidar os votos pelo correio. Recentemente, o próprio
Trump foi responsável por uma mudança importante na composição do tribunal. Ele
indicou — e o Senado americano aprovou — o nome da juíza conservadora Amy Coney
Barrett para uma cadeira no colegiado, formando assim uma supermaioria de 6 a 3
para os conservadores na instância mais alta da Justiça americana. Barrett pode
vir a ser a fiel da balança em um julgamento eleitoral na Corte.
Mas a inexistência de evidências de que eleições pelo
correio sejam particularmente vulneráveis a fraude e o fato de que, de acordo
com informações divulgadas por 20 Estados americanos, 45% dos votos antecipados
são de eleitores que se declaram democratas, contra 30% de republicanos e 24%
de independentes, têm levado analistas políticos a questionar a motivação do
presidente ao lançar dúvidas sobre o processo. Está claro que o cancelamento de
votos antecipados e via correio afetaria mais duramente seu oponente democrata
e facilitariam o caminho do presidente na conquista de mais quatro anos na Casa
Branca.
Efetivamente, a campanha do republicano já foi à Justiça
centenas de vezes nos últimos dias para tentar descartar ao menos parte dos
votos antecipados. Em duas decisões sucessivas às vésperas do dia da eleição, a
Justiça negou o pedido dos advogados de Trump, que queriam o descarte de mais
de 127 mil votos dados em uma área conhecida por ser democrata em Houston, no
Texas, um estado tradicionalmente republicano em que a disputa entre os dois
partidos se tornou particularmente apertada em 2020. A ação motivou críticas
até de correligionários de Trump. O republicano Joe Straus, ex-presidente da
Assembleia Legislativa do Texas, chamou o processo de "claramente
errado" e de evidência do uso de "táticas desesperadas".
CRÉDITO,AARONP/BAUER-GRIFFIN/GC IMAGES
Legenda da foto,
Em Rodeo Drive, famosa avenida de Beverly Hill, na
Califórnia, trabalhadores blindaram várias lojas de luxo àa vesperas de eleição
Demora nos resultados
Trump nega que esse seja o caso e afirma que sua intenção é
que os americanos tenham um resultado das eleições o quanto antes. Nas últimas
quatro disputas, a definição sobre o novo presidente saiu até a manhã do dia
seguinte à eleição.
"Nós podemos ficar semanas esperando até saber o que
está acontecendo. O mundo inteiro está esperando por essa decisão. Os advogados
vão entrar na Justiça para lutar", afirmou o presidente em um de seus
últimos comícios, na noite passada.
A contagem de votos por correio é mais demorada do que a de
cédulas preenchidas presencialmente, em seções eleitorais. Além disso, alguns
Estados, como a Pensilvânia, permitem a chegada de votos via correio por uma
semana após o fechamento das urnas, medida que o republicano julga inaceitável.
"Se as pessoas queriam ter seus votos contados, deveriam tê-los mandado
muito antes", diz Trump.
Auxiliares do presidente afirmaram ao site Axios que Trump
cogita se declarar vencedor antes do resultado consolidado
Auxiliares do presidente disseram ao site do notícias Axios,
em condição de anonimato, que Trump estaria cogitando se declarar vitorioso se
a contagem parcial de votos nos Estados de Ohio, Flórida, Carolina do Norte,
Texas, Iowa, Arizona e Geórgia desse a ele vantagem ainda na noite do dia 3.
Mas, pela própria dinâmica da apuração dos votos, um resultado inicial
favorável a Trump não é garantia de que ele foi o vencedor do pleito.
Para os especialistas, uma atitude desse tipo mergulharia a
democracia americana em descrédito e teria resultados potencialmente perigosos.
"Acho que se não soubermos o vencedor na noite da eleição, ou pelo menos
na manhã seguinte, entraremos em um território perigoso", afirma Richard
Pildes, professor de direito constitucional da Universidade de Nova York.
"Porque mesmo que as autoridades eleitorais estejam fazendo tudo de
maneira apropriada, o clima político nos Estados Unidos atualmente é tão
explosivo que, se houver incerteza sobre o vencedor, podemos imaginar tipos de
cenários começando a se desenvolver, incluindo o candidato que parece estar à
frente naquele ponto tentando se declarar o vencedor."
Uma corrida por armas
Tanto no cenário de um atraso nos resultados — causado pela
apuração via correio ou mesmo pela judicialização — quanto no caso de um dos
dois candidatos se declarar vencedor antes da hora, o resultado pode ser
manifestações de rua dos dois lados do espectro político.
Nos últimos meses, quando grupos de apoiadores de Trump e
manifestantes Black Lives Matter se encontraram, o resultado foi violência e
até mesmo mortes.
CRÉDITO,REUTERS
Legenda da foto,
Biden lidera pesquisas de intenção de voto, mas apoiadores
temem vitória inesperada de Trump como em 2016, contra Hillary Clinton
Um dado ilustra a percepção de perigo iminente que ronda o
pleito. Uma pesquisa de setembro do Instituto YouGov descobriu que 74% dos
americanos apostam que haverá violência após os resultados das eleições. Para
mais da metade deles (53%), o país verá muita violência.
Essa sensação explica o comportamento de parte da população
dos EUA em 2020. A Associação Americana de Comerciantes de Armamentos estima
que cerca de cinco milhões de americanos decidiram comprar uma arma de fogo
pela primeira vez nos sete primeiros meses do ano.
E a procura por armas e munições apenas aumentou no
pré-eleição, a ponto de ter esgotado o estoque do varejista Walmart em outubro.
Alvo de protestos, a rede chegou a recolher armas e munições de suas
prateleiras nos últimos dias alegando temores de "rebelião civil",
mas voltou atrás da decisão. Os EUA são conhecidos pela pouca restrição que
fazem ao comércio de armas.
Atos de violência estariam supostamente batendo à porta dos
próprios presidenciáveis. Na última sexta-feira, a campanha democrata denunciou
que apoiadores de Trump, que estariam armados e em um comboio de caminhonetes,
cercaram um ônibus da campanha de Biden e ameaçaram jogar o veículo para fora
da estrada. Vídeos postados nas redes sociais mostram o ônibus rodeados por
carros com bandeiras da campanha republicana. O FBI investiga o incidente, que
o presidente qualificou como "falso". "Na minha opinião, esses
patriotas não fizeram nada de errado", afirmou Trump.
Tensos, e eventualmente armados e protegidos por tapumes,
americanos esperarão, ninguém sabe por quanto tempo, pelo resultado das urnas.
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