quarta-feira, 9 de novembro de 2022
Lélia Gonzalez e a nação para o povo!
As posições políticas e reflexões de Lélia Gonzalez continuam balizadoras para os movimentos populares que assumiram a tarefa de reconstruir o nosso país impactado pelo modelo econômico ultra-neoliberal, ultraconservador e fascista
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8 de novembro de 2022
Lélia González concluir ser necessário pensar e propor um feminismo afro-latinoamericano. Foto: Fundação Cultural Palmares/Divulgação
Por Simone Magalhães*
Da Página do MST
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Na tarde do dia 28 de abril de 1987, Lélia González compareceu à sessão da subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias do Congresso Nacional, para discursar sobre “O negro e a sua situação” e, em seguida, apresentar, juntamente às representações do movimento negro brasileiro, propostas à Assembleia Nacional Constituinte (ANC), com vistas à integração na Constituição Federal de 1988.[1]
O quadro que pintei na cabeça: Lélia González e Helena Theodoro, convidadas pela deputada federal recém-eleita Benedita da Silva, descosturando, com estilete, a cortina do mito da democracia racial!
Quando convidada para discursar na ANC, Lélia González (1935-1994) já gozava de reconhecimento militante no âmbito do movimento negro e de notoriedade intelectual na vida acadêmica. Uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado (MNU), em 1987, Lélia ajudou a criar também o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN) e o Coletivo de Mulheres Negras N’Zinga. A partir desses espaços, do movimento negro nacional e da interlocução internacional com o movimento Pan-africanista, Lélia se dedicou a entender as particularidades do capitalismo brasileiro, e a compreender como o mito da democracia racial operava para silenciar e subalternizar o povo preto. Nessa trajetória, suas elaborações denunciaram reiteradamente a estrutura e a permanência do racismo e do sexismo na cultura brasileira.
Antes de qualquer discussão sobre o tema do negro, era salutar para Lélia González retomar o fio da história para desembrulhar o novelo encoberto pelo mito da democracia racial. Esse era o ponto! Partindo daí, Lélia González afirmou em sua intervenção que para falar em Projeto de Nação era necessário considerar que este não poderia ser assim nomeado caso não fosse considerada a participação do povo, e do povo preto!
Vejam que estou falando de sociedade o tempo inteiro, não falei em nenhum momento em nação brasileira, uma vez que o projeto de nação brasileira ainda é o projeto de uma minoria dominante, o projeto do qual a população, o povo, isto é, o conjunto dos cidadãos, não participa, e nesse conjunto de cidadãos temos 60% que são negros. E, para criarmos uma nação, temos que criar o impulso comum de projeto com relação ao futuro. E, para podermos ter impulso com relação ao futuro, temos de conhecer o nosso. E a história do nosso país é uma história falada pela raça e classe dominante, é uma história oficial, apesar dos grandes esforços que vêm sendo realizados no presente momento (GONZALEZ, 2020, p. 229).
Lélia compareceu à Constituinte porque compreendia muito bem o papel das instituições e o seu potencial para combater o racismo e o sexismo na sociedade brasileira.
A Abolição de 1888, para Lélia, retirou o povo preto da centralidade produtiva econômica, que passou à marginalização econômica e social, se formando como exército industrial de reserva e subordinado às condições de trabalho mais aviltantes. Essa transformação foi bastante benéfica ao capitalismo brasileiro porque ampliou a sua acumulação com a superexploração da mão de obra negra e, a partir dela, construiu as bases para o desenvolvimento industrial no início do século XX com a cultura cafeeira.
É inovadora, ainda, a análise de Lélia segundo a qual, mesmo empobrecida, a parcela pobre de grupos brancos desfruta de vantagem frente aos pretos, pois aqueles recebiam os dividendos do racismo. É o que assevera Lélia:
[…] a opressão racial nos faz constatar que mesmo os brancos sem propriedade dos meios de produção são beneficiários do seu exercício. Claro está que, enquanto o capitalista branco se beneficia diretamente da exploração ou superexploração do negro, a maioria dos brancos recebe seus dividendos do racismo, a partir de sua vantagem competitiva no preenchimento das posições que, na estrutura de classes, implicam as recompensas materiais e simbólicas mais desejadas. Isso significa, em outros termos, que, se pessoas possuidoras dos mesmos recursos (origem de classe e educação, por exemplo), excetuando sua afiliação racial, entram no campo da competição, o resultado desta última será desfavorável aos não brancos” (GONZALEZ, 2020, p.229).
Ou seja, para Lélia, grupos brancos pobres também se beneficiam do racismo, pois obtém recompensas materiais e simbólicas, uma espécie de salário psicológico do racismo.
A mulher negra é o sujeito mais violentamente atingido pelo capitalismo, racismo e sexismo, pois é ela quem sustenta econômica e moralmente a sua família, e mesmo quando tem escolaridade e os requisitos profissionais para ocupar postos elevados de trabalho é preterida. Por isso Lélia é certeira em seu diagnóstico:
[…] Quanto à mulher negra, sua falta de perspectiva quanto à possibilidade de novas alternativas faz com que ela se volte para a prestação de serviços domésticos, o que a coloca numa situação de sujeição, de dependência das famílias de classe média branca. A empregada doméstica tem sofrido um processo de reforço quanto à internalização da diferença, da “inferioridade”, da subordinação. No entanto, foi ela quem possibilitou e ainda possibilita a emancipação econômica e cultural da patroa dentro do sistema de dupla jornada, como já vimos.” (GONZALEZ, 2020, p. 35).
À medida em que foi estabelecendo diálogo com o movimento de mulheres latino-americano e caribenho, Lélia ampliou o espectro de sua análise e passou a abarcar também a reflexão sobre o racismo na América Latina e Caribe.
“O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento, tão bem analisada por cientistas brasileiros. Transmitida pelos meios de comunicação de massa e pelos sistemas ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca comprova sua eficácia e os efeitos de desintegração violenta, de fragmentação da identidade étnica por ele produzidos, o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado com a consequente negação da própria raça e da própria cultura” (GONZALEZ, 2020, p.130).
As análises e o pensamento de Lélia Gonzalez iam assumindo um caráter continental, na medida em que abarcavam o debate das desigualdades raciais, étnicas e culturais dos países latino-americanos e caribenhos. Daí a sua compreensão de não poder mais falar apenas de si mesma enquanto mulher negra, mas como parte de um bloco histórico que incluía as ameríndias e amefricanas do continente, é que ela foi capaz de concluir ser necessário pensar e propor um feminismo afro-latinoamericano.
[…] O feminismo latino-americano perde muito da sua força ao abstrair um dado da realidade que é de grande importância: o caráter multirracial e pluricultural das sociedades dessa região. Tratar, por exemplo, da divisão sexual do trabalho sem articulá-la com seu correspondente em nível racial é recair numa espécie de racionalismo universal abstrato, típico de um discurso masculinizado e branco. Falar da opressão da mulher latino-americana é falar de uma generalidade que oculta, enfatiza, que tira de cena a dura realidade vivida por milhões de mulheres que pagam um preço muito caro pelo fato de não serem brancas” (GONZALEZ, 2020, p. 130).
E conclui :
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