quarta-feira, 26 de outubro de 2022
O arroz com feijão sob ameaça bolsonarista
Em quatro anos, o feijão aumentou 143%; o arroz, 49%. Estoques públicos e subsídios aos grãos nutritivos foram desmantelados. Soja domina o campo e já equivale à área de MT, RJ, SE e DF juntos. Prato-símbolo do país representa 4% da produção de grãos
Notícias
25 de outubro de 2022
Por João Peres
De O Joio e o Trigo
O prato-símbolo do Brasil está com os dias contados? Orgulhoso devorador de Miojo, Jair Bolsonaro afastou a população do arroz-com-feijão. Os quatro anos de seu governo foram marcados por uma forte inflação dos dois itens – o preço do arroz chegou a subir 76% em 2020, enquanto o do feijão preto avançou 45,3% –, somada ao empobrecimento e ao desmonte de uma série de políticas públicas voltadas à alimentação.
Outros quatro anos na mesma toada poderiam representar uma separação definitiva entre a população mais pobre e o arroz-com-feijão. Até agora, não há nada que indique que no segundo mandato Bolsonaro colocaria a produção de alimentos e o combate à fome como prioridades – pelo contrário, o presidente segue a negar a existência de insegurança alimentar e terceiriza a culpa pela inflação.
A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) publicou no começo do mês a primeira projeção para a próxima safra de grãos. Como de costume, o Brasil baterá recorde. O que há anos não representa uma boa notícia: os grãos usados para a alimentação tradicional do brasileiro seguem perdendo espaço. Na contramão, a soja mantém um crescimento acelerado, e um crescimento que se dá sobre uma base já grande.
A safra brasileira será de 312 milhões de toneladas, uma expansão de 15,3% sobre a colheita passada. Mas, somando arroz e feijão, temos 13,76 milhões de toneladas, ou 4,4% do total da produção brasileira de grãos.
O que está acontecendo no mercado
Nas áreas rurais, o governo Bolsonaro representa ao menos duas grandes mudanças. A primeira mudança é de ritmo: a atual gestão mantém a prioridade dada desde os anos 90 à agricultura de exportação, que conta com
Subsídios públicos
isenção de impostos de exportação
infraestrutura pública na forma de estradas, portos e ferrovias
Porém, Bolsonaro cria um ambiente muito mais favorável a um avanço sem freios dos setores do agronegócio ligados a grilagem, desmatamento, violação de terras indígenas e crimes contra populações rurais.
Além disso, ele aperfeiçoa ou engendra mecanismos de atrelamento das terras brasileiras ao mercado financeiro. A Lei do Agro abre a possibilidade para investimentos em dólar e para uma concentração fundiária ainda maior – isso em um país famoso pela concentração fundiária. A lei dos fundos de investimento do agronegócio (Fiagro), aprovada a toque de caixa na Câmara e no Senado, cria condições para mais um boom de investimentos.
O que está acontecendo no campo
Todo esse boom tem um reflexo lá na ponta, na agricultura, na vida de quem está decidindo o que plantar. “A alta do preço foi referente aos combustíveis, principalmente o diesel, desde a embalagem e também os insumos agrícolas. Tudo isso subiu muito porque é atrelado ao dólar”, conta Caio Reiche André, um jovem agricultor da região de Campinas, no interior de São Paulo. Ele é da terceira geração que cultiva na propriedade familiar de 35 hectares, mas tem realizado uma mudança de rumos. “O aumento de custos fez com que o produtor produzisse cada vez menos. Então, quem produzia 50.000 pés de tomate começou a produzir 30 mil, 25 mil, que era o que dava com o mesmo orçamento.”
Às repórteres Mariana Costa e Amanda Flora, ele contou algo que ouvimos de vários outros agricultores: “O tomate, devido à falta de mão de obra, há dois anos, desde a pandemia, a gente migrou para a soja. Porque a mão de obra da soja é muito menor, é só um trator, e irrigação é menos do que o cultivo do tomate.”
Essa é a segunda grande mudança introduzida pelo bolsonarismo: o abandono das políticas e dos estímulos voltados a abastecer o mercado interno. Não se trata de um livre mercado no qual os agricultores estão decidindo o que plantar, e sim de um Estado voltado a unicamente defender os interesses de elites financeiras e rurais, empurrando os agricultores para uma via de mão única na qual são obrigados a aderir à lógica da soja, do milho ou do algodão.
Alimentos vs commodities
Dificuldade de financiamento para a produção de alimentos
vs
Facilidade de financiamento para a produção de soja e milho
Dólar valorizado aumenta os custos de produção (fertilizantes, agrotóxicos, maquinário)
vs
Real desvalorizado torna produtos brasileiros mais competitivos no exterior
Mercado brasileiro enfraquecido pelo empobrecimento
vs
Mercado potencial de sete bilhões de pessoas
Nas palavras da própria Conab, segundo as projeções para a próxima safra:
A redução da produção de arroz é reflexo principalmente da estimativa de significativa redução de área em meio à reduzida rentabilidade projetada para o setor, com a menor atratividade financeira do setor orizícola em relação às culturas concorrentes por área, como a soja e o milho”.
O mesmo para o feijão: “Tal valor indica diminuição na destinação de área em relação ao exercício passado, principalmente pela ampla concorrência de cultivos mais rentáveis recentemente, como soja e milho.”
“Essas lavouras [arroz e feijão] não têm a mínima condição de entrar numa rota de crescimento de milho e soja.” Quem diz isso é José Garcia Gasques, da Assessoria de Gestão Estratégica do Ministério da Agricultura. Ele coordena o estudo “Projeções do Agronegócio”, atualizado periodicamente.
Na versão mais recente, de 2021, o ministério projeta uma redução de até 60% na área cultivada com arroz ao longo da década. Em 2030, sobrariam 600 mil hectares, o equivalente a 10% do Distrito Federal. No caso do feijão, a redução seria de um terço, para 1,8 milhão de hectares – em torno de 30% do Distrito Federal.
No cenário mais positivo para o agronegócio, e portanto o mais negativo para a sociedade, o Brasil passaria a ser um importador dos dois grãos. Se esse cenário te soa improvável, há duas informações importantes:
no geral, o Ministério da Agricultura tem errado as projeções para menos, ou seja, na vida real a soja e o milho têm avançado até mais rápido do que o esperado. Para citar um exemplo, o país só ultrapassaria 150 milhões de toneladas de soja em 2024, mas isso acontecerá na safra deste ano
o Brasil tem importado 10% do consumo anual de arroz
Para Gasques, do Ministério da Agricultura, não há mudança no horizonte. “Os colegas nossos da Embrapa que olham arroz e feijão falam que o arroz pode dar uma virada, uma mudança de patamar se o Brasil começar a exportar arroz. Porque a qualidade do arroz brasileiro é muito boa. Se for mais relevante na exportação, isso deve trazer várias mudanças na cultura em termos de tecnologia.”
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